quarta-feira, 18 de dezembro de 2019





Tem que descer pra ajudar

Aqui nesta casa onde moro, logo que acordo, vejo uma goiabeira muito bonita.
Paro no terraço, com as mãos agarradas na grade, e vejo por entre as folhas e após o muro do quintal, as casas dos meus vizinhos dona Júlia, dona Dapaz e Zezé, filha do senhor Manuel.
Escuto alguma conversa de uma ou outra pessoa que passa na rua, ainda sem calçamento.

O vento parecendo competir com os pássaros, assovia utilizando as folhas da goiabeira e deixa-me paralisado olhando para o alto admirando aquele som. Ali, sigo procurando a origem de algum pássaro que canta mais forte desejando anunciar sua presença.

Depois de algum tempo, volto a cozinha para saborear um simples e delicioso café de soldado (decantado) e um pão com manteiga, enquanto minha mãe faz alguma coisa no balcão. 
E sigo pensando:
Hoje, não terei aula no Grupo Escolar!
Férias de final de ano!
...
Logo após o café, iniciando alguma brincadeira no jardim, uma surpresa:
Alguém parado no portão, conduzindo um saco branco, pedindo uma “esmola pelo amor de Deus”.
Surpresa rara para mim, por ver aquela cena. 
Aquilo não ocorria com frequência.
Corri pelo beco lateral da casa e avisei a minha mãe.

Minutos depois:
- Vá! Tome isso!
Ela preparava um pacote para que eu entregasse. Parecia alguma comida dentro.
Dizia que era para eu “aprender a dar as coisas” ... Deus iria abençoar!
No beco, na esquina da cozinha, ela me observava.

Logo que entreguei, observei que ao lado daquele senhor, esgueirando-se por fora do muro, uma criança que olhava para o pacote e para mim, intercalando o olhar e esticando em seguida a mão para seu condutor (possivelmente seu pai).
Seguiu mudo devagar, olhando para o pai com sua mão ainda estendida e voltando o rosto para mim que girava minha face na grade do portão vendo-os seguir.
Nunca mais os vi.
...


Hoje, no alto desse prédio não conseguimos vê-los. Nem eles a nós. Não conseguimos escutá-los ...
Eles não conseguem passar sequer pela portaria. As câmaras os denunciam direto para as autoridades. Os alarmes os mantem distantes com seus sofrimentos, pessoas vigilantes sempre atentas...

Em vão nos esperam nas calçadas, quando saímos apressados e temerosos, protegidos por carros blindados e, camuflados na escuridão do veículo.
Estamos nos isolando deles e de nós mesmos, porque somos unos! Restará uma fria e doentia solidão em meio a "segurança" dos eletrônicos.
...
Ao cair da noite, seguem algum destino em busca de abrigo nas marquises, ou praças, enquanto pensam onde aconchegar a mãe e filho por mais uma noite na cidade que não dorme.

Observam as luzes e enfeites e não entendem mais o significado.
Adormecem famintos e cansados em meio a uma cidade de tantos prédios.
...
Logo cedo, a fome aperta ainda mais. As últimas reservas de alimento são divididas com os mais frágeis.
Os bares e restaurantes fechados. As ruas próximas, ainda exalam o fétido odor do álcool, vômitos e urina.
Voltam, arriscando seus pedidos em frente a outros prédios.
A cena anterior que se repete:
Do alto, não conseguem escutar.
De baixo, não conseguem te pedir.
...
Daqui de onde estou, te digo e auxílio:
Você tem que sair pra ajudar!
Você tem que descer para ajudar!

Feliz Natal -2019

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