Tem que descer pra ajudar
Aqui nesta
casa onde moro, logo que acordo, vejo uma goiabeira muito bonita.
Paro no
terraço, com as mãos agarradas na grade, e vejo por entre as folhas e após o
muro do quintal, as casas dos meus vizinhos dona Júlia, dona Dapaz e Zezé,
filha do senhor Manuel.
Escuto alguma conversa de uma ou outra pessoa que passa na rua, ainda sem calçamento.
O vento
parecendo competir com os pássaros, assovia utilizando as folhas da goiabeira e
deixa-me paralisado olhando para o alto admirando aquele som. Ali, sigo
procurando a origem de algum pássaro que canta mais forte desejando anunciar
sua presença.
Depois de
algum tempo, volto a cozinha para saborear um simples e delicioso café de
soldado (decantado) e um pão com manteiga, enquanto minha mãe faz alguma coisa
no balcão.
E sigo pensando:
Hoje, não
terei aula no Grupo Escolar!
Férias de
final de ano!
...
Logo após o
café, iniciando alguma brincadeira no jardim, uma surpresa:
Alguém parado
no portão, conduzindo um saco branco, pedindo uma “esmola pelo amor de Deus”.
Surpresa rara
para mim, por ver aquela cena.
Aquilo não ocorria com frequência.
Corri pelo
beco lateral da casa e avisei a minha mãe.
Minutos
depois:
- Vá! Tome
isso!
Ela preparava um pacote para que eu entregasse. Parecia alguma comida dentro.
Dizia que
era para eu “aprender a dar as coisas” ... Deus iria abençoar!
No beco, na esquina da cozinha, ela me observava.
Logo que
entreguei, observei que ao lado daquele senhor, esgueirando-se por fora do muro,
uma criança que olhava para o pacote e para mim, intercalando o olhar e esticando
em seguida a mão para seu condutor (possivelmente seu pai).
Seguiu mudo
devagar, olhando para o pai com sua mão ainda estendida e voltando o rosto para
mim que girava minha face na grade do portão vendo-os seguir.
Nunca mais os vi.
...
Hoje, no
alto desse prédio não conseguimos vê-los. Nem eles a nós. Não conseguimos escutá-los
...
Eles não
conseguem passar sequer pela portaria. As câmaras os denunciam direto para as
autoridades. Os alarmes os mantem distantes com seus sofrimentos, pessoas vigilantes sempre atentas...
Em vão nos
esperam nas calçadas, quando saímos apressados e temerosos, protegidos por carros blindados
e, camuflados na escuridão do veículo.
Estamos
nos isolando deles e de nós mesmos, porque somos unos! Restará uma fria e
doentia solidão em meio a "segurança" dos eletrônicos.
...
Ao cair da
noite, seguem algum destino em busca de abrigo nas marquises, ou praças, enquanto pensam onde aconchegar a mãe e filho por mais uma noite na cidade que
não dorme.
Observam as
luzes e enfeites e não entendem mais o significado.
Adormecem
famintos e cansados em meio a uma cidade de tantos prédios.
...
Logo cedo, a
fome aperta ainda mais. As últimas reservas de alimento são divididas com os
mais frágeis.
Os bares e
restaurantes fechados. As ruas próximas, ainda exalam o fétido odor do álcool, vômitos e urina.
Voltam, arriscando
seus pedidos em frente a outros prédios.
A cena anterior
que se repete:
Do alto, não
conseguem escutar.
De baixo, não
conseguem te pedir.
...
Daqui de
onde estou, te digo e auxílio:
Você tem
que sair pra ajudar!
Você tem
que descer para ajudar!
Feliz Natal
-2019